28 Novembro 2022
A Santa Sé olha com desconfiança e teme os pedidos feitos pelos católicos na Alemanha.
A reportagem é de Sarah Belouezzane e Thomas Wieder, publicada por Le Monde, 26-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há disputas que, por causa de seus protagonistas, assumem uma simbologia muito particular.
Eles até conseguem trazer de volta fantasmas do passado que ninguém deseja ver retornar. É o que acontece no confronto em curso entre o episcopado alemão e a Santa Sé, que lembra a todos que foi de Wittenberg, no XVI século, que se iniciou a Reforma, o último cisma que dividiu a Igreja.
Nada parecido com isso, por enquanto, mas as tensões atuais fazem alguns temerem o pior. Na origem da tempestade, o início em 2019 pelo episcopado alemão de um “caminho sinodal”, sob a pressão dos leigos atingidos pelas revelações sobre as violências sexuais que aconteceram em muitas dioceses. Tratava-se de iniciar uma grande discussão sobre as mudanças a serem introduzidas na Igreja Católica para que isso não se repetisse. No centro das reflexões do caminho sinodal, quatro temas considerados particularmente ousados na instituição: o exercício do poder na Igreja, o modo de viver dos padres, o papel das mulheres e a moral sexual.
Desse processo de discussão, cujas conclusões deverão ser entregues a Roma em março de 2023, os bispos alemães foram discutir com a Santa Sé de 14 a 18 de novembro. No final das conversações, um comunicado assinado por ambas as partes falava das "preocupações suscitadas pelo caminho sinodal" em Roma e do "risco de uma reforma da Igreja" em vez de "reformas na Igreja", segundo o expressão do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado e número dois da Santa Sé.
Os cardeais Luis Ladaria e Marc Ouellet, respectivamente responsáveis pelos dicastérios (departamentos da cúria romana) para a doutrina da fé e dos bispos, também expressaram durante o encontro sua oposição ao processo de discussão alemão. Os dois prelados falaram “com franqueza e clareza das preocupações e reservas quanto à metodologia, conteúdos e propostas do caminho sinodal”. O cardeal Ouellet chegou a pedir uma "moratória" da reflexão alemã. O pedido foi rejeitado, mas deixa evidente a tensão que existe hoje entre Roma e um de seus principais contribuintes financeiros.
Os bispos alemães, portanto, deixaram Roma com sentimentos opostos. “Volto para casa com verdadeiro alívio porque falamos sobre a situação uns aos outros. Mas também volto com uma certa inquietação porque não consigo avaliar em que direção está indo o diálogo sinodal iniciado”, declarou o presidente do episcopado alemão, Georg Bätzing, em 19 de novembro, numa entrevista coletiva no Vaticano.
De volta às suas dioceses, muitos dos 61 bispos alemães que estavam com ele em Roma também fizeram declarações. Se todos reconheceram a qualidade e a cordialidade das suas conversas com os membros da cúria romana e com o Papa, com quem se encontraram durante duas horas, alguns admitiram que aquela estada em Roma os tornou sobretudo conscientes do fosso que se criou entre a igreja alemã e o Vaticano.
“Não conseguimos dissipar as fortes reservas que existem em Roma contra o processo de reforma em curso na Alemanha”, deplorou o bispo de Würzburg, Frans Jung. Em entrevista ao jornal da sua diocese, este defensor da ordenação de mulheres disse estar convencido de que o "rigor alemão" assusta o Vaticano, onde " mais uma vez surge o medo de que a Igreja alemã se separe da Igreja universal". No entanto, esses são temores infundados, segundo os prelados alemães. “O cisma não é uma opção. Nunca foi. Somos católicos e continuamos católicos”, assegurou D. Bätzing.
Para Hendro Munsterman, teólogo e jornalista, o medo de um cisma é acenado em Roma como uma bandeira vermelha por redes de conservadores que não desejam ver a Igreja avançar em questões ainda consideradas tabu por muitos. Como a ordenação de mulheres, o poder dos padres ou a bênção dos casais homossexuais. Ainda que sejam "livres", segundo uma tradição que o teólogo remonta à sua rejeição da infalibilidade pontifícia proclamada em 1870 e à necessidade de jurar fidelidade ao Estado alemão, os bispos da Alemanha ainda não "fazem o que querem", ressalta o especialista. No entanto, acreditam “que em Roma ninguém entende a situação de seus fiéis, mais de 50% dos quais são casados com protestantes”, acrescenta.
De fato, se eles têm o cuidado de não romper com a Santa Sé, os bispos alemães devem levar em conta também seus fiéis que estão cada vez mais "pressionando" sobre determinadas questões, como recordou D. Bätzing para a imprensa antes de deixar Roma. Entre as outras questões, “a do papel da mulher é a mais urgente e a que mais nos divide”, admitiu a presidente do episcopado alemão, lembrando que, para Roma, a ordenação de mulheres é “uma questão encerrada”, mas que, "para as católicas alemãs, uma Igreja que rejeita isso não pode ser a sua Igreja".
Até o Papa Francisco parece sentir desconforto com o caminho alemão. No entanto, no início de seu pontificado, ele parecia disposto a iniciar reformas profundas. “O Papa destampou imediatamente uma caixa de Pandora ao abrir a discussão sobre um certo número de temas”, analisa François Mabille, especialista dos atores religiosos no Institut de Relations Internationales Stratégiques (IRIS). Mas depois ele fechou algumas portas. Por exemplo, ele excluiu a ordenação de mulheres – “uma questão que não se discute” – e também exclui um “celibato opcional” para os padres. Além disso, deve levar em conta as correntes conservadoras de sua Igreja. A uma pergunta sobre o caminho sinodal, em 6 de novembro, ele respondeu que na Alemanha já existe “uma grande e bela Igreja Evangélica” [protestante] e que “não gostaria de outra”.
Hoje, a discordância é sobre conteúdo e a forma. No processo alemão, recorda François Mabille, grande espaço é dado à democracia e aos leigos, representados pelo Comitê Central dos Católicos Alemães (ZdK), que codirige o caminho sinodal com a conferência episcopal. “Isso, de alguma forma, coloca em discussão o poder dos bispos e dos padres e a forma de elaborar a doutrina católica, explica o especialista. Mas como o catolicismo é um regime monárquico autocrático, uma reforma profunda é impossível. É como para Gorbachev: perestroika mais glasnost, faz explodir o sistema”.
Quanto ao conteúdo, muitos apontam o fato de que as questões levantadas pelos alemães também são impossíveis de serem admitidas por Igrejas menos dispostas a mudanças, como na África, na Ásia, em parte da Europa e em boa parte do episcopado norte-americano.
“O Papa também se sente responsável pelo caminho de toda a Igreja universal. Talvez ele sinta que o caminho sinodal alemão está avançando rápido demais para os outros”, analisa Jérôme Vignon, ex-presidente das Semanas Sociais da França e observador leigo do processo alemão.
Especialmente porque este último apresentará suas conclusões muito antes do "sínodo sobre a sinodalidade", o grande movimento de reflexão iniciado por Francisco e que terminará em 2024. As questões candentes colocadas sobre a mesa na Alemanha poderiam, portanto, se impor ao resto do mundo. “Eles têm medo de que se alastre como um incêndio, que quebre as barreiras” entre os fiéis que querem mudanças em muitos países, aponta o teólogo Hendro Munsterman. É a força do símbolo, que depois de séculos continua sendo igualmente poderoso.
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A Igreja alemã pede reformas em Roma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU